segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Da canidade. Ou sobre a forma de conceber a condição canina. 1.ª Crítica ao livro Cães Letrados, por Leocádia Regalo

<Como leitores constantes de Cristóvão de Aguiar, fomos lendo pági­nas exemplares, motivadas por esses animais intuitivos, que surgiram na sua obra, desde a primeira narrativa – os cães. Quem pôde esquecer a morte da Girafa, a cadela dócil, em Raiz Comovida, ou o parto da Andorinha, no abrigo do alferes e de um sargento, em plena Guerra Colonial, de Ciclone de Setembro? Agora, somos presenteados com Cães Letrados, uma obra em que o escritor reuniu “os textos extraídos, com ligeiras alterações, de vários livros, narrando histórias de cadelas ou de cães”. Os desenhos de André Caetano vieram retratar com sensibilidade e fidelidade à narrativa esses peculiares bichos que dão pelos nomes de Monalisa, Adónis, Ísis, Schwarz, Petruska, ou então, Isquininho, Ligeiro, Valente, Pantera, ou ainda, numa designação de classe, cães de esplanada, cães universitários, cães cantores… O título Cães Letrados, numa ambiguidade irónica, possibilita uma leitura que faz ascender estes canídeos ao estádio das “Belles Lettres”, como personagens que usufruem de pleno direito do seu estatuto, nas diversas narrativas, ou uma outra interpretação para a qual contribui a significação caricatural de “cães universitários”, aqueles que o autor concebe com a dose de humor, por vezes sarcástico, a que vota todos os exage­ros do academismo e seus tiques.

“A minha atracção pelos cães é muito antiga” – declara o autor ficcionado em Relação de Bordo, ao referir-se à Exposição Canina Interna­cional de Coimbra, em que assiste ao certame, manifestamente surpreendido com a classificação do júri. E diz-nos:


De qualquer modo, havia, na exposição, canzoada para todos os gostos. Só que muitas vezes assim não entendia o júri, que classificava exemplares que eu eliminaria. (…) O José Jacinto é que acertava quase sempre, poucas falhou, e mesmo, quando falhava, o que escolhia era sempre bem classificado. (p. 69).

Mas não é deste entendimento que se ocupa o escritor, sempre que pre­tende enveredar o leitor pelos meandros da personalidade, dos hábitos, dos instintos, dos traços inigualáveis da “canidade”. Como criador da língua, explica o seu neologismo: «…dez anos de canidade: equivale a cerca de setenta de humanidade.” (p.61).

A condição canina é, assim, a temática recorrente nas narrativas que dão corpo a este livro. Estabelecendo relações paradigmáticas entre as manifestações da canzoada e a actuação dos humanos, o narrador, ora protagonista ora participante, demonstra a sua afectividade, verdadeira predi­lecção, pelos vários exemplares que vão surgindo na efabulação.

Saboreie-se o paralelismo de condição e de expressão quando se lê: “Restam agora a Tina, a Monalisa, a Eunice, o Adónis e o Pitão, diminutivo de Capitão, já com onze anos de casa, cama, mesa e pêlo esfregado…”(p.61). Ou então a situação do cachorro leitor, um husky que viajando no Inter-Regional, ao lado de uma futura médica, “ ia partilhando a leitura com a fortuita companheira de viagem com muito entusiasmo e compenetração”(p. 55). A situação tão pitoresca é narrada com toda a convicção:

A estudante que se sentou ao lado do Alex abriu uma sebenta, Lições de Pediatria, pude ler na capa. Pouco depois, vi eu com estes olhos o cachorro passando as páginas ao livro com a patinha direita. Esperto como é, viu logo que se tratava de matéria médica que lhe interessava por se tratar da fase etária que atravessava. (…) Só visto. Quando ambos chegavam ao fim da página, o cachorrinho apressava-se a virá-la delicadamente, a fim de continuar a leitura da matéria pediátrica. (p.55).

Aliás, este cachorro é o Adónis, cujo nome original que constava na cédula de nascimento foi para o narrador motivo de preocupação.

Ficou Adónis, o nome do velho deus babilónico da fertilidade, depois adoptado pelos gregos que o colocaram na sua mitologia com ademanes efeminados, simbolizando a beleza juvenil. Apesar de aparentemente fortuita, esta circunstância tornou-me meio apreensivo. Estando ainda o infante naquela idade em que o sexo é indefinido, poderia acontecer que, no momento da aclaração, tanto pode cair para um lado como para aquele de onde nunca mais se logra sair. E, confesso, sem qualquer preconceito sobre a orientação sexual de cada um, que não gostaria de o ver mais tarde num programa televisivo, já adulto e homossexual assumido, ladrando contra a repressão exercida pelo espírito machista da maioria da canzoada… (p. 52).

É nesta cumplicidade entre o narrador, o autor ficcionado e os sujeitos da fábula que se estabelece, na matéria narrativa, a essência da “canidade”. Quantas vezes surpreendemos a simpatia manifestada pelos cães vadios de primeira geração, legítimos, “os mais idóneos”, a demonstrar a sua supremacia face aos humanos, pela inteligência e aceitação com que jogam contra a adversidade: «Ninguém melhor do que eles conhecia os sinuosos meandros da desfortuna… Garantia-lhes um sentido prático e tolerante da existência inçada de percalços.» (p. 93). A racionalidade, apanágio dos homens, evidencia-se como a qualidade mais surpreendente na condição canina, graças a esse olhar profundamente intuitivo e sensível com que Cristóvão de Aguiar perscruta os seres, aliando ao plano dos afectos um sentido transcendente que recria o mundo com novas significações.

Tornei-me leitora assídua deste escritor, ilhéu como eu, depois de ter lido páginas de rara beleza literária, que me foram comovendo intensamente, à medida que acompanhava o sentir do rapazinho a quem coube a nefasta incumbência de abandonar a adorada “cadela branca, atravessada de galgo” aos braços da Morte. Não sei se me rendi à súplica do olhar da Girafa, se me fixei na impotência das lágrimas que lhe responderam, o certo é que dei comigo arrepiada de emoção, por entre o marulhar das palavras daquele narrador já distanciado da infância gravada a fogo na sua alma. Parei - atitude impulsiva, sempre que se interroga a nossa consciência, ao sermos confrontados com a excepcionalidade. E até hoje, volvidos mais de quarenta anos, apesar de reconhecer qualquer página de Cristóvão de Aguiar pela sua prosa única e inconfundível, nunca mais me esqueci desse momento de sorte – a escrita tornada comunhão perfeita. Foi a descoberta de um grande escritor, que já começava no plano da genialidade, e que passou a contar comigo no universo dos seus leitores incondicionais. Não admira, pois, que Fernando Namora, numa carta que lhe enviou, agradecendo a oferta do volume de Raiz Comovida, comentasse: « O episódio da Girafa é uma obra-prima. Ele bastaria para fazer um livro e afirmar um autor.» Vejamos como é justa esta opinião.

Ao contrário de outros cães mais proletários, não tinha a Girafa por costume assistir à missa do padre João. Em matéria religiosa tornara-se no pior que se podia acoimar em Tronqueira, uma Adventista do Sétimo Dia… Consciente da sua heresia e não querendo assumir responsabilidades quanto ao destino da sua alma de cadela, fui um dia à nossa Igreja, a horas mortas, munido de uma garrafinha de pirolito. Enchi-a de água benta numa das pias laterais onde os fiéis molham as pontas dos dedos para se benzer e esconjurar do tinhoso tentador das almas. Trouxe-a para casa às escondidas e dirigi-me à casa-de-trás e aí baptizei a cachorra com o nome que ela de resto já tinha e dava por ele quando a chamavam. Ao chegar-lhe ao focinho umas areias de sal, segundo manda a liturgia baptismal, e ao despejar-lhe, em seguida, sobre a cabeça o conteúdo da garrafa, em cruz, senti no íntimo que a Girafa se tinha humanizado e que uma alma disponível, dessas que vagueiam pelos ares desde o princípio do começo, havia descido das Alturas e incorporado-se no corpo ainda tenro da cachorra, fazendo dela o que afinal sempre fora – a Girafa! E ela foi medrando sem sustos de monta, tirante a rabugem, prontamente sarada, e outros achaques ligeiros próprios da idade. (p. 25)

Num registo totalmente distinto, usando um humor picante cheio de insinuações e subentendidos, as páginas de Passageiro em Trânsito dedicadas a Petruska são também um excelente exemplo de versatilidade narrativa. A cadelinha pekinois, que viaja a bordo do Carvalho Araújo, acompanhada pela «excelentíssima dona. Situada no terrorismo da idade e da pujança física. E proprietária de um par de coxas de refrear o fôlego» (p.160), é retratada à imagem e semelhança da dona, qual bibelô que desperta a atenção dos apreciadores. Esta, em deliciosa conversa que proporciona ao futuro doutor Afrânio Gaudêncio, no deque de primeira,

De passagem, menciona o imenso gosto da cadelinha pelas viagens marí­timas. A sua profunda capacidade de estabelecer novas amizades com outros cães e cadelas, um pouco menos com estas. Têm idêntico ofício e andam em busca do mesmo. Independentemente da raça, cor ou pedigree… Claro, andava perdida de amores pelo comandante do navio. Não devia dizê-lo, mas até sentia uma pontinha de ciúme. Claro que estava a brincar. Muito gostava de se esgueirar para o camarote-suíte do senhor comandante. Cheira-lhe a farda perfumada em masculino. As cadelas sentem enorme prazer através do olfacto. Mete-se-lhe na cama, ah sua descaradona. E deixa-se ficar de barriga para o ar, recebendo carícias no baixo-ventre, sua doidinha. Não é verdade, Petruska? Sempre foste uma maluca por ternura e cócegas. Aprendeste com a dona. E ela ainda te há-de ensinar mais. (p.161).

Tão excelente simbiose entre a “canidade” e a humanidade só se torna possível graças a este cómico de situação e de linguagem, em que a animalidade e a sensualidade se confundem em idêntica essência fútil.

E o que dizer dessas páginas dedicadas aos “cães universitários”? Aqui a humanidade ultrapassa a “canidade”, nos seus intentos e expedientes. De humor pitoresco ou corrosivo, o autor ficcionado não poupa comentários irónicos a esta casta de canídeos que vagabundeia pelos pátios das faculdades.

Uma Universidade que se preza, seja ela clássica, privada ou nova, não pode dispensar os cães refastelados nos átrios das respectivas faculdades ou nos amplos passeios e largos fronteiros às entradas principais. (…) Se é certo que, após prolongada convivência, o cão toma as feições e os tiques do dono, não será menos verdadeiro que a canzoada universitária absorve as idiossincrasias das diferentes faculdades que frequentam. (p. 100).

Através da sátira impiedosa, põe-se a nu, com investidas certeiras e sarcásticas, os procedimentos e atitudes de caricatos intelectuais, vergados ao peso de um academismo bafiento. A crítica literária pretensamente hermética, espartilhada no formalismo oco das exegeses pseudocientíficas é posta a ridículo na sua verborreia absurda. Se esta afirmação pode parecer contundente, confronte-se o que diz o narrador, ao opinar sobre “os cães das Letras”:

Nos canídeos das filologias menos clássicas, notam-se certas reminis­cências estruturalistas no ladrar de alto, sobretudo se trasladado para a escrita, em grelha, grelhada sobre a mesma chapa da estratégia e problemática operatória formuladas no contexto semiológico das reflexões teóricas acerca da matéria ficta do volume – palavra que não enlouqueci – em direcção ascensional ao entrecruzamento da dissenção paródica, inter­rogativa, inconclusa do posicionamento diegético enquanto exame da obra com vistas à prática da análise crítica e em certa medida da taxonomia semiótica desde a reflexão produzida pelo Homo Sapiens até aos nossos dias de hoje em que o arquitexto transcende o texto e como tal faz apelo à teoria, constituindo-se, portanto, num pressuposto abstracto de formas conceptuais e categoriais de certo modo reguladoras da ordenação textual em termos de conjunto totalizante, na medida em que não se furta a um grafismo de incógnita.

“Ó senhor Figueiredo, traga-me já uma água natural Serra do Trigo; estou a sentir-me com a digestão a parar, mas tenho esperança de que, com a água mineral, acabe por arrotar, o arroto é a libertação, olha que nem me apetece contemplar aquele navio desatracando-se do paredão do molhe para tomar, depois, o rumo nas rotas do mar…" (p. 102)

Ao retratar os cães que circulam nas diversas faculdades, o escritor não faz concessões, não perdoa a vacuidade e vaidade da “mísera condição”, entregue a perversidades e ao tráfico de influências, numa actuação assumida e exibicionista. Servindo-se das potencialidades da língua com magistral à-vontade, não se inibindo de dizer o que pensa, nem que para isso tenha de recorrer à expressividade vicentina, Cristóvão de Aguiar tem o verbo recheado de intermitências agudas de polémica e lucidez que castigam a sociedade naquilo que ela poderia ter de mais resguardado – a inteligência.

O que me parece que fica claro em todas as narrativas deste livro é essa capacidade de transpor para a escrita o mundo dos afectos, numa dimensão íntima, de grande autenticidade, onde a alma se derrama em lembranças, evocações, sentimentos cúmplices e de angústia, imensa ternura e uma aversão declarada à hipocrisia mundana e à intelectualidade modernaça.

Merece a pena ler (ou reler) Cães Letrados. Por se tratar de uma obra de um escritor açoriano que sempre se afirmou, nas letras nacionais, como um exímio cultor da Língua Portuguesa, recriando-a na sua diversidade e tratando-a com uma correcção clássica, no seu riquíssimo léxico, que lhe permite usar o arcaísmo ou o neologismo com a plasticidade única que a construção semântica exige, tornando-se assim um virtuoso da língua. Porque esta antologia de textos nos faz reflectir especularmente sobre as atitudes, positivas e negativas, que nos levam à conclusão de que, na fronteira entre a racionalidade e a irracionalidade se encontram muitas vezes os homens, sendo estes animais dotados de grande intuição, discernimento, sensibilidade, dedicação, fidelidade, compaixão, solidariedade, bravura, meiguice e tantas outras qualidades amplamente manifestadas na narrativa dos seus comportamentos. E ainda, por causa da edição cuidada, realçada por uma ilustração sóbria e adequada, contida no traço expressivo de André Caetano, o jovem que nos ajuda a imaginar visualmente as personagens deste livro.

Coimbra, FNAC, 6 de Dezembro de 2008

Leocádia Regalo
Escritora.

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Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006