segunda-feira, 20 de setembro de 2010

1. Pois eu li uma obra cujo autor merecia um Nobel! in Diário de Coimbra,31/08/2010 "A Tabuada do Tempo – A Lenta Narrativa dos Dias" de Cristóvão de Aguiar.

“(…) Ouço o Sol brincando em silêncio num retirado recanto do jardim. Por vezes sabe-me a som. Tanto desejava compartilhar este secreto sol que esbraseia o meu saboreá-la. Repouso o coração no sanguíneo desfecho da tarde relvado de memória. Andarinhocos empoleiram-se no telhado da casa enquanto retiro pétalas às palavras. Hão-de profetizar e matizar as cores pacificantes que molharam o seu corpo escorrido de verde-mar. Com os olhos acaricio-a ao longe e ao longo das linhas de água que de Ela se despenham coalhadas da luz salina que as ondas nele esculpiram. Gostava que o mapa de sal, que a cristalografia constrói no silêncio suturado de sol, entardecesse sobre a pele do seu corpo. (…)”
Cristóvão de Aguiar escreve num jeito de ilhéu, saudoso e melancólico. “Despenha-se-me em cascatas pelos sentidos abaixo. A Ilha.” A sua Ilha sempre presente “navegando nos mares que me habitam por dentro.”E o mar, eternamente o mar da sua Ela, em que “A Tabuada do Tempo” é o seu diário com sabor a sal, a maresia, um suceder de partilhas e vivências quotidianas, postas a nu, numa descrição intimista. Em muitas e deliciosas páginas o autor, “vestindo a recordação de palavras (…)” em que “ (…) a saudade é o desejo de desejar e não o desejo das coisas em si”,perpassa pela sua juventude na Ilha mas também, no seu dia-a-dia citadino em Coimbra. Ao longo das laudas o autor, põe em confronto permanente a guerra e paz no seu “parir “ a escrita, reconhecendo não conseguir ler outrem enquanto em “trabalho criativo”. Sempre rodeado de livros que lê ou escreve, Cristóvão de Aguiar confronta-se com a publicação duma sua obra em que a espera angustiante, o aguardar dos comentários por parte de quem lê o original, a ansiedade no “sim” do editor o trazem “curioso e expectante”. Existe no escritor o narrar dos dias. As trivialidades de que se compõem a nossa vida sobretudo o “tempo” que sempre nos gere e nos mata; o clima ensolarado que nos enche a alma ou nos corrói de calor; a chuva e o nevoeiro que nos tolhem os passos estugados. “Esta tarde a noite lembrou-se de cair mais cedo. Ainda não são quatro e meia e lá fora já há ameaças de escuridão. Tanto e tão grosso nevoeiro (…) Tenho frio (…) O frio deve ser outro e provir de outro quadrante. Só assim se compreende”. É com estas palavras que o autor pressagia um “não” de “Ela”. Depois tudo se resume a uma tulipa “que Ela me deixou no solitário sobre a secretária” e nos fantasmas que deambulam pela casa.
“A Tabuada do Tempo A Lenta Narrativa dos Dias” é uma apresentação de vida através duma lógica talvez matemática, talvez filosófica … mas sobretudo através da lógica do amar, do sentir e da espera: “Nem tão-pouco te prestas a analisar ou a sentir isto: que nem tu nem eu merecemos ser torpedeados por esta maneira tão absoluta de contracenar (…) Vais deleitar-te com o dano que a missiva te provocará e tu a leres de afogadilho. O que tu fazes para te provar que me amas ou te amas! Depois de amanhã à noitinha vais zarpar ao meu encontro. Tomarás a lancha para me ires sentindo em cada sorvo de vaga. Ao longo do mar revolto sobre o qual, em vagalhão, ainda te espero. Sempre te esperei!”

1 comentário:

Karoline Serpa disse...

É tão difícil encontrar blogs com qualidade... Bom, achei mais uma agulha no palheiro.
Parabéns.

Sempre que der, aparecerei por aqui.

Caso desejo conferir: http://papilioinnocentia1.blogspot.com/

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006